By Jill Purce
Portuguese Translation of Sound in Mind and Body
Planeta, No.128, July 1987, Sao Paulo, Brazil.

As vibrações sonoras, como poderosa fonte de transformação, estão sendo redescobertas pelos povos do Ocidente Meu interesse particular pelo som provavelmente surgiu quando eu ainda estava no útero, pois minha mãe era pianista e meu pai, médico. O que mais me interessa é o poder de cura e de transformação do som.

Comecei a trabalhar com o som quando vi as fotos de um filme sobre o trabalho de Hans Jenny, um engenheiro e médico suíço que foi influenciado pela obra de Rudolph Steiner. Jenny estava tentando demonstrar o efeito do som sobre a matéria, isto é, o que acontece na matéria quando você a faz vibrar com o som de várias maneiras, e usava todo tipo de substância. Ele usava líquidos, pastas e pós finos, expondo-os a diversos tipos de som.

Enquanto essas experiências eram executadas, surgiram determinadas estruturas. Observei uma porção de matéria sem forma específica adquirir padrões finos e sutis - também encontrados na natureza -, influenciada pelo som. E, quando Hans Jenny usava outras substâncias ou sons diferentes, os padrões também se modificavam - e isso era relevante.

Se a matéria, sob influência sonora, consegue produzir determinadas formas ou padrões, isso comprova que o som é algo muitíssimo importante. Assim, fiquei inspirada para começar minhas próprias pesquisas. Li muita literatura sobre esse assunto e cheguei à conclusão de que em muitas tradições o som é considerado uma força poderosa e universal.

A Criação através do Som

Examinando todas as minhas fontes de pesquisa detalhadamente, descobri que entre povos e civilizações distanciados fisicamente uns dos outros sobrevive a mesma idéia: o mundo inteiro foi criado pelo som - e esse processo continua em andamento. Em outras palavras, a criação seria um acontecimento sonoro.

Esse conceito é encontrado tanto no Oriente quanto no Ocidente. O universo vibra, e o ser humano sempre soube que tudo tem sua identidade por causa da regularidade rítmica do movimento do universo, e é isso o que diferencia um ser do outro e dá a cada coisa sua forma específica.

No Evangelho de São João, cap. 1.1, está escrito: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. E na tradição hindu encontramos palavras semelhantes: não apenas o princípio do som, mas também da linguagem.

Nessas tradições, o princípio não surgiu apenas através da palavra e do som, mas também nomeando-se as coisas - como na Bíblia, quando Adão dá nome a tudo que o cerca. Ao receber um nome, qualquer coisa adquire uma identidade específica porque só tem aquele nome e nenhum outro - ela, então, pode ser “reconhecida”. é este o princípio da linguagem e do pensamento.

Temos assim o ato de criar através da vibração e da língua. Se quisermos tecnologizar o mundo, precisamos da linguagem - e, desse modo, da diferenciação; mas se quisermos situar-nos no aqui e agora, precisamos desligá-la e deixar de dar nome às coisas.

Olhando para uma árvore, por exemplo, normalmente dizemos para nós mesmos: “árvore”. Ligando desse modo a linguagem, ela nos domina e, de repente, começamos a nos lembrar de todas as coisas que não fizemos ainda e precisamos fazer, e assim por diante - pondo-se a mente a tagarelar interiormente ou a fazer velhas (e novas) associações com a árvore. Nomeando as coisas ficamos presos ao tempo; não podemos dar nome a algo sem localizá-lo no passado ou no futuro. Se quisermos evitar isso - isto é, se não pretendemos viver num determinado espaço de tempo, mas apenas num contato íntimo com o ser “árvore”-, não devemos chamá-la pelo nome, que, afinal, é apenas uma invenção da mente humana. Porque, pensando em “árvore”, nos distanciamos dela - o mesmo acontecendo com todas as coisas que nos cercam.

Temos que aprender a desligar nossa ação verbal, que nos acompanha desde o nascimento e nos causa tanto prazer. Devemos saber usá-la apenas quando quisermos. Exercícios sonoros de ioga são desenvolvidos com essa intenção.

Eles “rebentam”a atenção, dando-lhe tanta atividade que esquecemos de pensar. Assim, os exercícios criam um círculo fechado de atenção: usando nossa voz e atentando para o modo como ela soa, o dualismo da linguagem, a separação entre nós e o mundo desaparece.

Observando que algo é diferente de nós e que também diverge de outras coisas, criamos a distinção e, assim, a língua. Em todas as tradições se busca eliminar a distância entre o eu e o outro, para poder formar uma unidade. O som é um dos meios mais eficazes de se suprimir essa separação.

A Descoberta de uma Tradição Viva

A qualidade mágica e curativa do som era bastante conhecida entre os antigos - especialmente pelos egípcios, mas também por gregos, chineses e hindus. Contudo, eu queria saber em que tradições essa sabedoria ainda permanecia viva, e, assim, comecei a estudá-la. Descobri que os tibetanos conseguiram conservar o significado verdadeiro do som e da voz devido à situação especial de sua cultura, o que fez com que ela permanecesse viva, sem grandes alterações.

Antigamente, a cultura espiritual do Ocidente era semelhante à do Tibete - quando eremitas, vivendo em cavernas, realizavam milagres espantosos. Mas essa parte de nossa cultura se perdeu no “Século dos Luzes”, enquanto no Tibete a tradição ainda se preserva bem viva - talvez devido à sua localização geográfica tão especial ou, quem sabe, por causa da atmosfera incomum do Himalaia.

Durante muitos séculos uma ciência espiritual altamente sofisticada foi desenvolvida pelos tibetanos. Na língua desse povo existe uma grande quantidade de palavras que, de um modo ou de outro, significam “espírito”, o qual foi estudado por gerações seguidas.

Os tibetanos falam do homem de três maneiras: no que tange ao corpo, à alma e à voz – localizados, respectivamente, na cabeça, na garganta e no coração. Eles não associam o espírito ao cérebro, como no Ocidente. Para eles, a voz é a intermediária entre o reino sutil (do espírito) e o físico (do corpo): ela é considerada uma ponte que une o material e o imaterial. O falar, a voz, o som e a respiração sutilizada (ou prana) estão todos interligados. Mas não são apenas os tibetanos que consideram o som como uma ponte - esta idéia é bastante difundida em todo o mundo. O som, por exemplo, é freqüentemente o intermediário para se transformar o espírito em matéria e vice-versa. Em todas as civilizações o som sempre foi usado como um meio para se trilhar o caminho da transcendência, para transmutar a matéria novamente em espírito.

Podemos ver a realização desse conceito de maneira literal usando o som de um objeto para quebrá-lo. Escutando, por exemplo, o tom de um copo de vinho e cantando depois no mesmo tom, poderíamos quebrá-lo apenas com a voz - quer dizer, conseguiríamos arrebentar uma determinada forma pelo som. Isso pode ser feito com o auxílio de força física, mas também espiritualmente.

Na tradição tibetana do Dzogchen, o objetivo é relaxar num estado de contemplação e viver nossa vida com integridade, de tal modo que as implicações de nossos atos fiquem evidentes na claridade de cada momento, e que vivamos como um peixe n’água. Quando fluímos nas ondas do Tao, não deixamos nenhum rastro e levamos uma existência perfeita que não cria distúrbios. Se, por qualquer razão, não conseguimos fazer isto, talvez haja algum bloqueio ou distúrbio na nossa energia ou algum tipo de problema na nossa mente que nos impede de fazê-lo. Neste caso, há certas coisas que podemos fazer para facilitar o processo.

Existem muitos tipos de práticas, e o som é freqüentemente usado para produzir um estado de clareza e de contemplação.

Mantras

Na índia também a voz é muito importante como meio de transformação: tanto neste país como no Tibete ela é mais usada em mantras, os sons sacrais derivados de idiomas tão antigos que se desconhece o significado de algumas palavras.

Existem determinados sons utilizados para curar doenças ou problemas, e outros que nos levam a um estado de iluminação ou vazio. Existem ainda mantras que nos sintonizam com os mestres de nossa própria corrente espiritual - usando esses sons, entramos em contato com eles e partilhamos de sua sabedoria, além de contatarmos todas as pessoas que já se utilizaram daqueles sons.

Os mantras são usados em todas as partes do mundo. Entre os sufis - os místicos do Islã - combinam-se formas de canto mântrico com movimentos rítmicos do corpo e com o ritmo da respiração para levar a pessoa a um estado de êxtase transcendental ou de bem-aventurança espiritual.

Quase todas as liturgias também são cantadas nas igrejas cristãs. Durante as missas e cultos, quando todos cantam juntos salmos, hinos, invocações e preces, as pessoas entram num certo estado de exaltação. Assim, todos entram em sintonia juntos. Quando se passa da fala para o canto, acontece algo muito interessante. Através do canto, é possível a união do indivíduo com todos. é por isso que todos os países têm um hino nacional.

A Base Shamânica

As grandes religiões mundiais se impuseram às tradições locais xamanistas, milhares de anos mais antigas que elas. Muitas práticas sonoras de ioga já existiam na índia e no Tibete bem antes do surgimento do budismo. Os exercícios de canto, os movimentos rítmicos e a respiração cadenciada são métodos antiqüíssimos assimilados pelas novas religiões.

Os dervixes dançantes também aplicam esses métodos. Eles dançam em espiral, rodopiando enquanto respiram, e rezam ao som da flauta - que se parece muito com a voz humana. Eles dizem que “o corpo de um dervixe é como o de uma flauta, soprado por Deus”.

O Que Eu Ensino

Depois de estudar várias tradições, resolvi começar a dar aulas sobre o assunto. Descobri que os princípios do uso do som eram semelhantes; julguei, então, ser importante entender o que tinham em comum e ensiná-los de modo a ajudar pessoas alienadas das suas próprias tradições. Sabendo como utilizar a voz, podemos aproveitar-nos de toda a sabedoria dos nossos antepassados e redescobrir esse instrumento maravilhoso que está sempre conosco.

Usamos a voz apenas inconscientemente, mas, como em todas as tradições, ela poderia servir para nossa própria transformação. Se conseguíssemos liberá-la, também libertaríamos o ser humano. Ela é o nosso meio de expressão. é o meio pelo qual podemos tornar-nos conscientes de nossa respiração e, através dela, conseguir comunicar-nos com o universo.

Inspiramos o mundo e nos expiramos nele, num intercâmbio constante que quase sempre ocorre de maneira inconsciente. Mas podemos modificar totalmente essa troca. Ensino às pessoas várias técnicas de respiração, porque isto é uma arte em si, exigindo muita precisão. Cada técnica tem seus propósitos, dependendo do estado a ser alcançado, a experiência desejada ou aquela parte de nós com a qual queremos comunicar-nos.

No início, temos de respirar normalmente. Além disso, tentamos modificar nossa respiração para cantar, e cantamos para desenvolver nossa respiração. Depois, temos de fazer tudo ao mesmo tempo para silenciar a nossa mente tagarela e alcançar o estado natural do espírito. Se quisermos eliminar os pensamentos, precisamos respirar com muito mais lentidão.

Em geral, as pessoas respiram rápido e superficial demais, acentuando a inspiração. Alta e concentrada, uma respiração rápida é necessária em técnicas de rebirthing, onde se usa superventilação para revelar material emocional. Mas, se quisermos ir além da superfície emocional, além da atividade da mente pensante, devemos respirar de modo muito mais lento, acentuando a expiração. Podemos aprofundar o padrão da respiração de várias maneiras, modificando-o, assim, totalmente.

Durante a respiração deixo as pessoas ouvirem: não é importante apenas produzir som, mas também é essencial escutá-lo. Porque, desse modo, fechamos o círculo da atenção, excluindo o eterno diálogo interior. Ensino as pessoas a criar o som e ouvi-lo ao mesmo tempo. Depois, mostro-lhes como utilizá-lo para se libertar do padrão de ansiedade, alimentado pelas experiências sensoriais.

Cada percepção coloca em movimento o processo de “denominar” (linguagem e pensamento) e, assim, a comparação no tempo do futuro e do passado. Desse modo, somos desligados imediatamente do presente pelo medo, a tristeza e o sofrimento. Esses fortes padrões negativos atacam primeiro nossa emoção e energia, causando depois mudanças tão drásticas nas partes mais frágeis do corpo que estas adoecem.

Se usarmos o som para trabalhar sobre o campo morfogenético de uma pessoa - isto é, o modelo ressonante, potencial do próprio estado de saúde daquele indivíduo -, podemos conservá-la saudável. Em inglês, sound (som) também significa são. Eu tento afinar o veículo que é o homem - conservar alguém afinado é ajudá-lo a preservar sua saúde.

é possível descobrir o próprio som. Cada um de nós tem seu som único, específico, e nos workshops demonstro como desenvolvê-lo e deixar todo o seu ser ressoar com ele. Nesse caso, sua voz tem de ser mais grave e muito mais rica, pois assim você vibra junto com ela quando canta. A alma do som pode revelar-se quando você se entrega ao seu próprio som, num canto harmônico. Este último método tem uma origem xamanista. Ele revela o núcleo do som em notas individuais, que soam juntas acima do tom em que se canta. é um acontecimento mágico, não importa se realizado sozinho ou com um grupo de pessoas. O indivíduo se sente como se estivesse evocando seres angelicais. Ao mesmo tempo, como os movimentos da língua estão diretamente ligados ao pensamento, ao utilizar a língua para diferenciar e produzir sons interpretáveis da própria voz - os quais, anteriormente, eram inconscientes e indiferenciados - estimulamos também determinados nervos, muito pouco usados.

Meu Objetivo Real

Meu objetivo não é modesto. Compreendo que nada menos do que a transformação da humanidade é necessária neste momento e farei tudo que puder para tornar real essa possibilidade. Visto que a voz é um instrumento de transformação que carregamos conosco o tempo todo, é também um dos meios mais poderosos e mais prontamente disponíveis para essa transformação. Meu método consiste em abrir os ouvidos das pessoas para que possam ouvir sua própria voz. Então, sua própria voz pode se tornar um meio de transformação. Quando digo transformação, quero dizer que podemos viver nossa vida em harmonia com o meio ambiente e com as outras pessoas, facilitando, assim, a iluminação dos outros e a iluminação da vida sobre a terra.

Uma Experiência com Crianças

Recentemente ministrei um curso de verão a um grupo de professores. Conversamos sobre como a reunião nas suas escolas os embaraçava. Na Inglaterra, as escolas têm todos os dias, durante a aula, uma espécie de reunião, e existem regras cristãs bastante rígidas a respeito das preces. E isso os embaraçava especialmente porque esses professores freqüentaram a escola durante um período humanista de modernismo; então, eles não sabiam o que fazer, pois eram obrigados a participar das reuniões. Eu acreditava que devia ser possível usar essas reuniões para que toda a comunidade escolar se sintonizasse, utilizando para isso o som, mas não do modo cristão tradicional. Falei com várias pessoas durante aquele curso de verão e elas pensavam que, talvez, fosse possível para determinados grupos, com crianças mais velhas. Logo esqueci tudo a respeito.

Voltando a Londres, encontrei na minha “oficina” seguinte cinco professores. Parece que algo que não ia além de uma intenção de um momento para o outro iria concretizar-se. Havia duas professoras de música que lecionavam em algumas escolas no Norte de Londres, um supervisor de ensino musical, um professor que trabalhava com crianças excepcionais e uma professora especializada no método Montessori, todos na mesma “oficina”. Fiquei tão surpresa que começamos a falar sobre as possibilidades da reunião escolar e eu lancei minha idéia.

Uma semana depois fui convidada a dar aula numa escola básica no Norte de Londres - pela manhã, para crianças de dez e, à tarde, para as de sete anos. A diretora da escola ouvira algo sobre minha idéia e se mostrara muito interessada. Os dois professores das classes que iria ensinar e várias outras pessoas estavam presentes. Por ser a primeira vez que lecionava para crianças, fiquei meio assustada com tantas testemunhas. Mas me senti também muito excitada.

As crianças compreenderam imediatamente do que se tratava. Elas fizeram perguntas bem precisas e brilhantes, penetrando logo no “x” da questão. Entenderam o que estava ocorrendo e foram totalmente espontâneas. Pedi-lhes para descreverem suas experiências enquanto escutavam certos sons, tons, notas harmônicas, etc. O que me contavam assemelhava-se mais a visões do que a descrições. Eu esperava que elas se imitassem, dizendo: “Oh, sim, aconteceu comigo também!”, mas me enganei. Cada experiência era totalmente diferente, mas se originava da mesma fonte coletiva. Foram visões cósmicas realíssimas as que as crianças tiveram, e ficaram muito excitadas. Na segunda parte da aula, elas podiam pintar o que viram. Os professores presentes estavam totalmente estupefatos - nunca tinham visto as crianças tão espontâneas. Algumas que não abriam a boca agora falavam sem parar, descrevendo suas experiências. E, quando começaram a pintar, foi simplesmente incrível. No passado também me dedicara à pintura e fiquei comovida vendo as obras dessas crianças. Da escuridão pularam cores brilhantes do arco-íris, apareceram ondas claras, e listras com bolas coloridas e iluminadas boiavam no espaço. Pinturas simplesmente extraordinárias, e as crianças continuavam tão eufóricas que não conseguiam parar, começando a escrever poemas sobre suas experiências.

Os pais, mais tarde, também contaram coisas surpreendentes. As crianças tinham chegado em casa completamente entusiasmadas com o que lhes acontecera. Se pudéssemos dar às crianças, desde muito pequenas, essas experiências, talvez fosse realmente possível transformar nossa sociedade.

Manter uma pessoa em sintonia é mantê-la saudável

O que mais me interessa é o poder de cura e de transformação do som

O som no corpo do iogue

O som é uma das técnicas mais eficazes de ir além da separação


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